Em 1964, em pleno desenvolvimento do Concílio Vaticano
II, realizou-se a primeira Campanha
da Fraternidade (CF) em
âmbito nacional, sob os cuidados da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
Para o ano de 2018, foi escolhido o tema “FRATERNIDADE E SUPERAÇÃO DA VIOLÊNCIA” e o lema: “VÓS SOIS TODOS IRMÃOS” (Mt 23,8),
com o objetivo geral de construir a fraternidade, promovendo a cultura da paz, da reconciliação
e da
justiça, à luz da palavra de Deus, como caminho de superação da violência.
O tema da CF-2018 pretende advertir que a
violência nunca constitui uma resposta justa. A Igreja proclama, com a
convicção de sua fé em Cristo e com a consciência de sua missão,
que a violência é um mal, é inaceitável como solução para os problemas e não é digna do ser humano.
A busca de soluções alternativas à
violência para resolver os conflitos assumiu, atualmente, um caráter de
dramática urgência. É, portanto, essencial a busca das causas que originam a
violência, em primeiro lugar as que se ligam a situações estruturais de injustiça, de miséria, de exploração, nas quais é necessário intervir
com o objetivo de superá-las (cf. Compêndio da
Doutrina Social da Igreja).
Já o lema “Vós
sois todos irmãos”
busca resgatar o sentido da fraternidade dos povos, pois
somos todos irmãos
e irmãs, filhos e filhas de
um mesmo Pai. Por isso, iluminados pelo evangelho do Reino, somos chamados à
não violência.
A CNBB convida todos os homens e mulheres
de boa vontade a percorrer o caminho da superação da violência, crescente em
todos os níveis. Para isso, é preciso olhar a realidade, iluminá-la com a luz
da palavra de Deus e do magistério da Igreja e, por fim, agir sobre ela,
transformando-a.
A convivência pacífica e a sociabilidade
violenta parecem disputar os mesmos espaços no cotidiano. No Brasil, criou- se
um discurso conveniente, segundo o qual o povo brasileiro é pacífico; contudo,
basta observar com cautela a sociedade para perceber como a violência está
presente no dia a dia das pessoas.
Tal violência, com o passar dos anos, foi
se tornando uma cultura institucionalizada e sistematizada, gerando assim os
rostos nos quais se contempla o descaso com a pessoa humana e o quanto ela é
tolhida em seus direitos e dignidade.
A definição mais genuína
da palavra cultura
é “cultivo”. Disseminar uma cultura é cultivar um modo de ser, de estar e de agir.
Quando se apresenta a violência como cultura, parte-se
de uma análise da realidade em que comportamentos, mídias, expressões verbais,
músicas etc. foram
se tornando “normais”, “comuns”. Essa cultura
é produzida pelos indivíduos, que, ao
mesmo tempo, se tornam vítimas do próprio sistema de violência.
A violência cultural institui na sociedade
uma situação em que alguns atos violentos são reconhecidos como legítimos ou naturais.
Assim, a violência cultural não constitui
a causa primeira da violência, mas é condição
para que a sociedade tenha uma visão míope dos atos violentos;
em outras palavras, uma consciência anestesiada, pois aquilo que deveria ser
considerado violento – porque é um mal em si – passa a não ser assim considerado.
A mídia é a grande colaboradora do processo
de naturalização da violência, pois a polariza em alguns contextos específicos – por exemplo,
o narcotráfico, os assassinatos e as guerras
–, como se ela só fosse possível
nesses “ambientes
organizados”. Esquece-se que a violência
nasce no próprio
ser humano, quando
este escolhe o caminho do ódio, do não
perdão, da inveja, da soberba. Acrescido a isso, a sociedade aceita
passivamente atitudes de natureza violenta.
A cultura da violência é uma cultura
excludente, pois a associa às classes sociais e raciais, criando, assim,
estigmas sociais como “o povo
daquele país não presta”, “aquele
rapaz tem cara de bandido”, “aquela mulher merece
apanhar”. Essas expressões,
tornadas corriqueiras, são um modo de descriminalizar a cultura da violência.
As estatísticas confirmam isso quando apontam registros crescentes de xenofobia no Brasil, o grande número
de jovens negros
encarcerados, a multidão
de mulheres que, no silêncio do lar, sofrem violências diversas.
Essa naturalização se converte em
indiferença. Os números da violência no Brasil revelam uma calamidade social.
Raramente, porém, o espectador ultrapassa o nível de leve indignação diante dos
dados. Isso que ocorre no plano individual se manifesta como uma espécie de
anestesia nos governos, que não se sentem compelidos a elaborar políticas
públicas capazes de reverter a tragédia em andamento (cf. Texto-base da
CF-2018).
A cultura se atualiza por meio de ações sociais,
ou seja, ocorre quando a sociedade vai cristalizando alguns comportamentos,
chegando a institucionalizá-los. Nesse sentido, a Campanha da Fraternidade de
2018 não quer somente identificar a cultura da violência, mas sobretudo
combatê-la. Para isso, é preciso entender como essa cultura vai se
sistematizando na pessoa, na comunidade e na sociedade.
A violência apresenta-se nas mais variadas
formas: física, psicológica, institucional, sexual, de gênero, doméstica,
simbólica, entre outras. Superar as várias faces da violência é tarefa de
todos. Exige o compromisso de cada cristão e cristã no enfrentamento das
múltiplas formas de ofensa à dignidade humana que se naturalizam
escandalosamente em nossa sociedade.
Ainda que o Brasil, nos últimos anos, tenha apresentado evidentes avanços e conquistas sociais,
estes ainda não foram
suficientes para eliminar
a desigualdade. Uma vez que cresce a desigualdade, cresce
também a violência. O não atendimento aos direitos elementares das
pessoas constitui um nascedouro para
a violência em sociedade.
Somam-se, nesse desafiador quadro social,
as causas externas de mortalidade (decorrentes de acidentes de trânsito,
afogamento, envenenamento e outras formas de violência, como agressões,
homicídios, suicídios, tentativas de suicídio, abusos físicos, sexuais e
psicológicos), que contribuem para mais de 138 mil óbitos anualmente em nosso
país, segundo dados de 2010 do Ministério da Saúde. Os homicídios no Brasil,
por exemplo, tiveram um aumento de 259% num período de trinta anos. Segundo o
Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 11% dos assassinatos do mundo acontecem
no Brasil, onde uma pessoa é morta a cada dez minutos; 50.806 pessoas foram
vítimas de homicídios dolosos no país somente em 2013, ano que registrou 50.320
casos de estupro;
o número de presos no sistema penitenciário brasileiro cresceu 5,37% entre 2012 e 2013, sobrecarregando ainda mais o
já desumano sistema penitenciário; e os custos da violência chegaram a 258
bilhões de reais nesse mesmo período, correspondentes a quase 6% do PIB (soma
de todas as riquezas que o país produz em um ano); nos últimos cinco anos, as
polícias brasileiras mataram 11.197 pessoas, mas os policiais também foram
vítimas: em 2013, 490 foram mortos,
75% dos quais fora de serviço. Dados do Índice
de Vulnerabilidade Juvenil
à Violência e Desigualdade
(IVJ 2014) apontam que, no Nordeste,
um jovem negro corre cinco vezes mais o
risco de ser morto do que um jovem
branco. Dos quase 30 mil jovens
assassinados em 2012, 76,5% eram negros ou pardos, ou seja, morreram
225% mais jovens negros
do que brancos. De acordo
com o IVJ, no Brasil,
esse índice é de 2,5, ou seja,
são assassinados 2,5 vezes mais jovens
negros do que brancos.
A evolução histórica
da mortalidade violenta
no Brasil impressiona: segundo
o Mapa da Violência 2014 – Os Jovens do Brasil, entre os anos 1980 e
2012, morreram no país 1.202.245 pessoas vítimas de homicídio, 1.041.335
pessoas vítimas de acidentes de trânsito e 216.211 suicidaram-se. As três causas somadas totalizam
2.459.791 vítimas (cf. Texto-base
da CF-2018).
Sabe-se
que a violência está presente
em toda a sociedade e se manifesta de formas diferentes, mas é sabido
também que as populações mais vulneráveis é que são mais vitimadas.
Enquanto as classes de maior poder aquisitivo podem se proteger com uma série de artefatos que alimentam a “indústria da segurança” e dão uma falsa sensação
de proteção, os mais pobres estão expostos à insegurança.
O direito à proteção é para todos, e se
alguns estão tolhidos desse direito, isso se dá pelo fato de não haver
políticas públicas que favoreçam
a totalidade dos cidadãos. Os impostos, que deveriam servir
ao bem comum, são escoados
por obra da corrupção, num
país em que parece estar institucionalizada a fraude contra o dinheiro público.
A violência não é um fenômeno apenas
cultural, mas, ao se instalar na sociedade, vai se sistematizando. Tal sistema é
bipartido e polarizado: de um lado, estão os que querem a todo custo tirar
vantagem; de outro, as vítimas da desigualdade. Por sua vez, as instituições
precipuamente responsáveis por zelar pelos direitos elementares de segurança,
justiça e paz acabam se transformando em instituições corrompidas, como é o caso do sistema de justiça criminal
brasileiro (formado pelas polícias, pelo Ministério Público,
pela Justiça e pelo sistema prisional), que, muitas vezes, não consegue
responder adequadamente às problemáticas contemporâneas.
A sociedade ainda se pauta na reação,
e não na prevenção; na punição, e não na educação para o senso de pertença. Com o passar do tempo, os
sistemas que deveriam ser um serviço à seguridade social tornam-se instituições
sobre as quais a desconfiança cresce dia a dia.
A violência que se manifesta diariamente e em intensidade numérica cada vez maior
muitas vezes é ocultada para dar espaço a fatos midiáticos. Alguns
casos ficam tão expostos nos meios de comunicação, que levam a população a particularizá-
los e a focar especificamente neles, esquecendo-se de outros, muito mais numerosos, que acontecem todos os dias. E, ainda, a
mídia, ao apresentar situações de modo teatral, desperta na população
um senso justiceiro, um desejo de fazer justiça
com as próprias mãos. Volta à cena o desejo
do mais alto grau de punição: a morte, como se fosse
a solução para erradicar
todos os tipos de violência.
O descarte do ser humano, seja ele vítima
ou autor do malfeito, não é o caminho. Não se pode alimentar um sistema
maniqueísta que separa
bons e maus, justos e injustos. É preciso voltar-se ao senso de alteridade: o outro (alter)
é meu irmão; se é meu irmão, eu não o descarto quando
erra, mas o ajudo a se reeducar
no caminho do bem.
É preciso
passar de um sistema
excludente, elitista e descartável para uma sociedade
fraterna, responsável e inclusiva.
Quando se fala de vítimas
da violência, não se pode ficar o tempo todo generalizando. Por trás de cada vítima há um rosto, uma pessoa com vontade, liberdade
e capacidade para amar, que teve os seus direitos
arrancados pela violência. O convite que a Igreja faz, por meio da Campanha da Fraternidade, não visa à superação de um quadro estatístico cheio de
dados e números; ela convida à superação na
vida e na história de cada homem e mulher subtraídos de seus direitos.
A Igreja não quer apenas apontar dados e
estatísticas, mas convida cada um a contemplar os rostos e a história de tantos
irmãos e irmãs:
– rosto dos que
sofrem violência racial;
–
rosto dos que sofrem
violência de gênero.
Muitas mulheres continuam sendo vítimas da cultura patriarcal e machista, de salários reduzidos, da violência doméstica, de
abuso sexual. Cabe lembrar aqui os irmãos e irmãs da comunidade LGBT, vítimas
constantes do preconceito e da violência física;
– rosto dos que
sofrem violência doméstica, tendo como principais vítimas as mulheres, as
crianças e os idosos;
– rosto das vítimas
da exploração sexual e do tráfico humano, sobretudo mulheres e crianças;
–
rosto dos trabalhadores rurais
e dos povos tradicionais. Aumenta
o conflito no campo; os trabalhadores rurais,
na luta por seus direitos,
muitas vezes são assassinados e expulsos da terra. Os povos tradicionais, que
estão na terra desde muito antes da chegada
dos colonizadores, são tratados com estranhamento e com o endurecimento das leis de criação de reservas;
–
rosto
das vítimas do narcotráfico. Cada vez mais cresce o número de pessoas que
perdem a vida por causa do narcotráfico. A vida é tirada
não só pelo consumo dos entorpecentes, mas também pela violência do crime organizado, gerador de um sistema
injusto, que prende
crianças e jovens
consumidores de drogas,
mas raramente (ou nunca) pune exemplarmente
os grandes traficantes;
–
rosto
das vítimas do trânsito. As pessoas, tendo o
direito de ir e vir, precisam fazê-lo com segurança. Muitas são as vítimas do
trânsito, seja pela irresponsabilidade pessoal dos que ingerem álcool ou não
respeitam a sinalização, seja pela ausência
dos poderes públicos na manutenção das rodovias.
Com esse elenco
de rostos da violência, não se fecha
o assunto; ao contrário, com acurada reflexão, é possível perceber uma infinidade de pessoas e
situações marcadas por essa realidade.
Não basta identificar a violência como cultura e como sistema
e distinguir suas vítimas; é preciso iluminar
essa realidade com o evangelho.
A Sagrada Escritura foi sendo inspirada ao
longo dos séculos. É uma história de salvação que passa pelas marcas da
história da humanidade, constituída de momentos de fraternidade, de paz, de luta
pela justiça, mas também marcada pelo pecado da divisão, da guerra, do abuso do
poder.
Muitas vezes os sentimentos humanos são
atribuídos a Deus, apresentando-o como vingativo, violento e cheio de ira.
Muitos textos da Sagrada Escritura carregam essa marca da projeção da violência
humana em Deus, caracterizando-o como um Deus justiceiro.
A Revelação atingiu
sua plenitude no mistério da encarnação de Jesus Cristo,
que é por excelência uma pessoa de paz,
de não violência, de prática da fraternidade.
Jesus revela que Deus é Pai (Abbá)
e os homens e as mulheres são irmãos e irmãs. A fraternidade anunciada por Jesus é composta
de um caminho de misericórdia, que pede e oferece perdão; um caminho em que se
assume a postura do samaritano, o qual se inclina
sobre a dor do que sofreu
violência, dele cuida
e com ele supera
o sofrimento.
Do Novo Testamento deriva uma consequência
prática: quem conhece Jesus promove a paz, jamais estimula a violência. Quem,
em Cristo, sabe que foi agraciado com a paz deve se tornar um reconciliador, um
construtor de paz.
Como lembra
um antigo escrito cristão:
“Deus enviou-o (seu
Filho) para nos salvar, para
persuadir, e não para violentar, pois em Deus não há violência” (Carta a Diogneto, VII, 4; cf. Texto-base da CF-2018).
A Igreja guarda o tesouro deixado por seu
fundador, cabendo-lhe a missão do anúncio do evangelho da paz e da superação da
violência.
Quando
estudamos a história da Igreja, percebemos que nem sempre ela foi fiel à sua
missão; muitas vezes escolheu
o caminho do não
diálogo, chegando a extremos escandalosos.
A Igreja não esconde os erros da sua história,
mas aprende com eles e busca cada dia refazer
a escolha do seguimento
de Jesus. Ela segue o seu Mestre
– que não agiu com violência, mas morreu de morte violenta
– e, guiada pela sua presença
ressuscitada e pelo seu Espírito, por meio da comunhão e da missão, busca
oferecer a todos os povos um caminho para vencer a violência.
Poder-se-ia aqui fazer memória de inúmeros
homens e mulheres que, ao longo dos séculos, deram testemunho de superação da
violência. Contudo, essa reflexão se centrará na primavera da Igreja no século
XX, o Concílio Ecumênico Vaticano II e os papas contemporâneos.
Em sua reflexão sobre a comunidade humana
internacional, a constituição pastoral sobre a Igreja no mundo de hoje Gaudium et Spes indica
como elementos que se deve ter presentes para uma convivência pacífica e para o progresso
da paz: a índole comunitária
da vocação humana; a interdependência da pessoa humana e da sociedade humana; a
promoção do bem comum; o respeito pela pessoa humana; o respeito e amor pelos
adversários; a igualdade essencial entre todas as pessoas; a superação da ética individualista; a responsabilidade e a participação social; a solidariedade humana (n. 24-32).
São João XXIII,
na encíclica Pacem
in Terris, afirma
que, em nosso tempo, não é racional
que a guerra seja usada
como instrumento da justiça (cf. n. 67). Ele, que viveu de perto os horrores da guerra, cita
Pio XII: “Com
a paz, nada se perde.
Tudo, com a guerra,
pode ser perdido”
(n. 62).
O Beato Paulo VI, em sua memorável
Populorum Progressio, reafirma a completa exclusão da violência do ideal de
sociedade coerente com a dignidade humana. São João Paulo II, na Mensagem para
o Dia Mundial da Paz de 2002, recorda que “não há paz sem justiça, nem justiça
sem perdão”.
Na sua mensagem
para o Dia Mundial da Paz de 2007, Bento
XVI recorda que a raiz da ausência
de paz está localizada no contexto da desigualdade social:
“Na raiz de não poucas
tensões que ameaçam
a paz, estão certamente as inúmeras
injustas desigualdades ainda tragicamente presentes no mundo. De entre
elas são, por um lado, particularmente insidiosas as desigualdades no acesso a
bens essenciais, como a comida, a água, a casa, a saúde; e, por outro lado, as
contínuas desigualdades entre homem e mulher no exercício dos direitos humanos
fundamentais”. Fica evidente aqui a necessidade de superar a violência superando as desigualdades sociais.
Em tempos recentes, o Papa Francisco
recorda que a superação da violência passa pela fraternidade, fundamento e
caminho para a paz. Surge espontaneamente a pergunta: Poderão um dia os homens
e as mulheres deste mundo corresponder plenamente ao anseio de fraternidade
neles gravado por Deus Pai? Conseguirão, meramente com as suas forças, vencer a
indiferença, o egoísmo e o ódio e aceitar as legítimas diferenças que
caracterizam os irmãos e as irmãs? Parafraseando as palavras do Senhor Jesus,
poderemos sintetizar assim a resposta que ele nos dá: dado que há um só Pai,
que é Deus, vós sois todos irmãos (cf. Mt 23,8-9). A raiz da fraternidade está
contida na paternidade de Deus. Trata-se, por conseguinte, de uma paternidade
eficazmente geradora de fraternidade, porque o amor de Deus, quando é acolhido,
se transforma no mais admirável agente de transformação da vida e das relações
com o outro, abrindo os seres humanos à solidariedade e à partilha ativa.
A superação da violência não é uma teoria,
mas deve ser um caminho de ativa transformação. Essa mudança passa pela pessoa,
pela comunidade e pela sociedade. A conversão conjugada
dessas três realidades é uma trilha segura para todo
desejo de superação.
As pessoas
não estão inseridas no mundo para
viver isoladamente, mas
dependem do “outro”
para viver. Essa
condição, que favorece
a prática relacional, desafia a todos – como sujeitos da própria história
– a cuidar do outro,
ou seja, a fazer parte da história do outro.
A superação da violência passa pela
conversão pessoal. É preciso assumir a espiritualidade do seguimento de Jesus,
o modelo de pessoa que escolheu ser não violento. A conversão, compreendida na
mudança de atitudes e comportamentos, é a principal proposta que a liturgia
quaresmal oferece.
O mundo muda quando a pessoa muda. Para que isso
aconteça, é preciso adotar uma postura correspondente à de Jesus, promovendo a
cultura da paz, adotando mídias alternativas, que não tratam a violência com
sensacionalismo, participando dos conselhos paritários e de políticas públicas
para a superação da violência, valorizando a instituição familiar, vivendo uma vida menos consumista, pedindo
e oferecendo perdão,
adotando a cultura
da empatia. E recordando-se sempre de que o outro não é apenas o
outro: ele é irmão.
Cabe aqui fazer uma salutar memória da
caminhada pastoral da Igreja no Brasil, a qual, ao longo dos anos, motivada
pelo espírito da profecia e da luta pela fraternidade, por meio de suas
pastorais sociais, tem dado passos gigantescos na superação da violência.
As Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora
da Igreja no Brasil 2015-2019 (DGAE) recordam: com as atitudes de alteridade e
gratuidade, expressões do amor, os discípulos missionários promovem a justiça,
a paz, a reconciliação e a fraternidade. Desse modo,
oferecem à sociedade
atual o testemunho do perdão
e da reconciliação (Lc 23,34),
que devem ser incessantemente manifestados e transmitidos (Mt 18,21-22)
em um contexto de crescente violência. O caráter
radical do amor de
Deus atinge sua extrema
manifestação no amor aos inimigos.
A reconciliação supera toda divisão
que nos afasta
de Deus e nos separa uns dos
outros (DGAE 12).
–
Destaca-se
o trabalho da Pastoral da Mulher Marginalizada como uma luz para o
enfrentamento e a superação da violência contra a mulher.
–
Outras
experiências de superação e, consequentemente, de humanização dos processos
sociais podem ser observadas na Pastoral da Saúde, da Pessoa Idosa, da Pessoa
com Deficiência, da Criança e da Sobriedade, em que o “carisma” do cuidado se faz presente.
–
O
cuidado e a justiça iluminam os trabalhos da Pastoral Carcerária, Indigenista,
do Menor, da Mulher Marginalizada, da Terra e o Grito dos Excluídos, em que os
embates por políticas públicas de prevenção e superação da violência são por
elas assumidos.
– Nas CEBs, na
Pastoral Operária e no laicato, é possível compreender a missão de ser sal e
luz no mundo.
–
Outro
trabalho de grande significado é aquele realizado com os usuários de álcool e
drogas nos centros de recuperação, como a Associação Esperança e Vida e a
Fazenda da Esperança, ou por pessoas de boa vontade que fazem de suas aptidões
profissionais uma missão,
acrescentando a “fé” e o “cuidado” no seu agir
em relação ao outro.
Por
fim, considerando a proposta da Pastoral do Menor, é possível recordar que ninguém
nasce infrator. Cabe a todos a missão
de ir ao encontro do “outro”. Esse
“outro” é o mesmo que
o Evangelho de Mateus nos apresenta: “Estive
preso e foste me visitar”.
No decorrer da história, várias iniciativas sociais
da Igreja foram sendo assumidas pela sociedade e se tornaram
políticas públicas. Portanto, o olhar social da Igreja exigiu
posicionamento do Estado em relação ao sofrimento humano por ele negligenciado.
Pensar a
superação da violência no interior do sistema capitalista, que mantém sua centralidade no lucro econômico, e não no ser humano, exige grande esforço na identificação e
compreensão das iniciativas que sinalizam possibilidades de enfrentamento e superação da violência. Essas iniciativas, pensadas
e desenvolvidas em harmonia com a manutenção desse sistema, no qual o ser humano
é apenas um objeto para o consumo,
tornam-se “paliativos” para
a cultura da não violência (cf. Texto-base da CF-2018).
Portanto, enquanto uma mudança de
paradigmas não acontece, é preciso voltar-se para algumas iniciativas que
favorecem a construção de uma cultura da paz, mediante a consolidação de
políticas públicas e a participação de conselhos paritários de direitos, para o
enfrentamento da violência que se desenvolve nos âmbitos de sua abrangência,
como é o caso da violência doméstica na sociedade brasileira.
Urge uma reação cidadã, com incidências
transformadoras em vários níveis. Só assim será fortalecida a cultura da
liberdade e da autonomia, para mitigar a violência e o desrespeito à dignidade.
Sofre-se
pela falta de lideranças com estatura, em diferentes níveis.
Encontra-se, com maior facilidade, quem levanta a voz para a reclamação e a lamentação, ou
mesmo para o vandalismo. Há carência de pessoas que se dediquem a uma atuação mais criativa, corajosamente inovadora e cidadã,
especialmente no âmbito
governamental, primeiro responsável pelo bem comum. Os descompassos produzidos por tantos
desencontros e equívocos nas escolhas das prioridades sociais – por falta de
competência humanística e de ajustada visão antropológica de muitos
profissionais da política –, ao lado
da sede mesquinha de dinheiro, resultam na incapacidade de gerar redes de solidariedade.
A superação da violência começa
pelo respeito à dignidade da pessoa humana,
defendendo e promovendo a dignidade da vida humana em todas as etapas da existência, desde a fecundação até a morte natural, tratando
o ser humano como fim, e não como meio. A proposta é a
superação da violência. Para concluir, bastam as palavras do papa Francisco no
encontro com
os presidentes Abbas
(Palestina) e Peres
(Israel) no ano
de 2014: “Ouvimos
um chamado e devemos
responder: o chamado a romper
a espiral do ódio e da violência, a rompê-la com uma única
palavra: ‘irmão’. Mas,
para dizer essa palavra,
devemos todos levantar
os olhos ao céu e reconhecer-nos filhos
de um único Pai”.
Por Pe. Luís
Fernando da Silva
Pe. Luis Fernando da Silva, presbítero da Diocese de São João da Boa Vista/SP, secretário-executivo da Campanha da Fraternidade, membro do Fundo Nacional de Solidariedade e diretor editorial das Edições CNBB.