No Brasil,
a festa do Batismo do Senhor, com a qual se dá o encerramento do tempo do Natal, substitui
o primeiro domingo do tempo
comum, de modo que este começa com o segundo domingo. A espinha dorsal da
liturgia da Palavra nos domingos do tempo comum
é a leitura contínua do evangelho do ano (no caso, Marcos),
e os textos evangélicos são ilustrados, na 1ª leitura, por
episódios do Antigo Testamento. A 2ª leitura não se integra nesse sistema e
recebe sua temática, de modo independente, da leitura semicontínua das cartas do Novo Testamento (hoje, a questão
da fornicação em Corinto).
A leitura
evangélica está em continuidade com a do Batismo do Senhor. Narra a vocação
dos primeiros discípulos de Jesus. Ora, como o evangelho
do ano, Marcos, é mais breve que os outros, a liturgia de hoje abre espaço para
o Evangelho de João (normalmente lido só na Quaresma e no tempo pascal). De
acordo com o Quarto Evangelho, João Batista encaminha dois de seus discípulos para Jesus, apontando-o como o Cordeiro
de Deus. E quando vão em busca
de Jesus,
este lhes responde
com o misterioso: “Vinde e vede”. A liturgia combina
com esse texto
a vocação de Samuel,
na 1ª
leitura. As duas vocações, porém, são diferentes. No caso de Samuel, trata-se
da vocação específica do profeta; no episódio dos discípulos de Jesus, trata-se
da vocação de discípulos para integrar a comunidade dos seguidores. São chamados, antes
de tudo, a “vir” até
Jesus para “ver”
e a “permanecer/morar” com ele.
Daí se inicia
um processo de “vocação em cadeia”.
Os que foram encaminhados pelo Batista até Jesus chamam
outros (“André… foi encontrar seu irmão…”). Nessa dinâmica global da vocação
cristã se situam as vocações
específicas, como a de Simão, que, ao aderir a
Cristo, é transformado em pedra de arrimo da comunidade cristã.
Desde seu nascimento, o profeta Samuel
fora dedicado ao serviço de Deus no santuário de Silo, em agradecimento
pelo favor que Deus demonstrara a Ana, sua mãe estéril
(cf. 1Sm 1,21-28).
Mas o serviço no santuário
não esgotou sua missão. Antes que Samuel fosse capaz
de o entender, Deus o chamou para a missão de profeta. A vocação de Deus,
porém, não é coisa evidente. Descobre-se pouco a pouco. Três vezes Samuel ouve
a voz, pensando ser a voz do sacerdote Eli. Este faz Samuel entender que é a
voz do Senhor; então, quando ouve novamente o chamado, o jovem responde: “Fala,
teu servo escuta”. Escutar é a primeira tarefa
do porta-voz de Deus.
Como
dissemos, o evangelho é tomado de João, no episódio do testemunho do Batista: a
vocação dos primeiros discípulos. João Batista encaminha seus discípulos a se
tornarem discípulos de Jesus (o tema volta em Jo 3,22-30). À busca desses
discípulos corresponde um convite de Jesus para que venham
ver e permaneçam com ele (Jo 1,35-39). E a partir daí segue uma reação em cadeia (1,41.45).
Temos aqui a apresentação tipicamente joanina da busca do Salvador. Nos outros evangelhos, Jesus se apresenta anunciando a irrupção do reino
de Deus. Em João, ele é a resposta de Deus à busca do ser humano, assim como o
Antigo Testamento diz que a Sabedoria se deixa encontrar pelos que a buscam (cf. Sb 6,14).
Devemos buscar o encontro
com Deus no momento oportuno, enquanto se deixa
encontrar (Is 55,6).
“Vinde ver…” é a resposta misteriosa de Jesus à busca dos discípulos que o Batista
encaminhou para ele, apontando-o como
o “Cordeiro de Deus”. Descobrimos, portanto, atrás da cena
narrada no evangelho (Jo 1,35-39), toda uma meditação sobre o encontro com Deus
em Jesus Cristo, revelação de Deus que supera a Sabedoria do Antigo Testamento.
Pelo testemunho do Batista, os que buscavam
o Deus da salvação o vislumbraram no Cordeiro de Deus, o Homem
das Dores. Querem saber onde é sua morada (o leitor já sabe que sua morada é no
Pai; cf. Jo 14,1-6). Jesus convida a “vir e ver”. “Vir”
significa o passo
da fé (cf. 6,35.37.44.45.65; também
3,20-21 etc.). “Ver”
é termo polivalente, que, no seu sentido mais tipicamente
joanino, significa a visão da fé (cf. sobretudo Jo 9). Finalmente, os
discípulos “permanecem/demoram-se” com ele (“permanecer” ou “morar” expressa, muitas vezes, a união vital
permanente com Jesus;
cf. Jo 15,1ss). Os que foram à procura do mistério do Salvador e Revelador
acabaram sendo convidados e iniciados por ele.
Um
encontro como este transborda. Leva a contagiar os outros que estão na mesma
busca. André, um dos dois que encontraram o procurado, vai chamar seu irmão Simão
para partilhar sua
descoberta (v. 41: “Encontramos!”). Simão se deixa conduzir até o Senhor,
que logo transforma seu nome em Cefas (rocha,
“Pedro”), dando-lhe nova
identidade. Na continuação do episódio (1,45),
encontramos nova “reação
em cadeia”. Como o Batista
apresentou seus discípulos a Jesus, em seguida os
discípulos procuraram outros candidatos. Estes traços da narrativa podem aludir
à Igreja das origens, consciente de que o “movimento de Jesus” teve suas origens
no “movimento do Batista” e de que, nas gerações futuras, os fiéis já não
seriam chamados por Jesus mesmo, mas por seus irmãos na fé.
Como foi dito na introdução, a temática da 2ª leitura
não é estabelecida em função das duas outras leituras. Paulo trata da mentalidade da comunidade de Corinto,
influenciada por certo libertinismo. Liberdade, sim, libertinagem, não, é o teor de sua reação.
“Tudo é permitido”, dizem certos cristãos de Corinto, e Paulo responde: “Mas nem tudo faz bem”
(6,12). Quem se torna escravo de uma criatura comete idolatria: assim se
dá com quem se vicia nos prazeres do corpo. O
ser humano não é feito
para o corpo, mas o corpo para o ser humano, e este para Deus: seu corpo é habitação, templo de Deus, e serve para glorificá-lo.
A
oposição de Paulo à libertinagem sexual não se deve ao desprezo do corpo, mas à
estima que ele lhe dedica. O corpo não fica alheio ao enlevo do espírito,
antes o sustenta
e dele participa; por isso, qualquer ligação
vulgar avilta a pessoa toda. O ser humano todo, também o
corpo, é habitáculo do Espírito Santo. A pessoa deve ser governada para este
fim do ser humano integral, membro de Cristo, e não ser subordinada às
finalidades particulares do corpo. Absolutizar os prazeres corporais é
idolatria, e esta é uma mensagem que precisa ser destacada no contexto de nossa
“civilização”.
Segundo o Evangelho de João, foi dentre os discípulos do Batista que surgiram os primeiros seguidores de Jesus. O próprio Batista
incentivou dois de seus discípulos a seguir Jesus,
“o Cordeiro que tira o pecado do mundo”. Enquanto se põem a segui-lo, procurando seu paradeiro, Jesus
mesmo lhes dirige
a palavra: “Que
procurais?” – “Mestre, onde moras?”, respondem. E Jesus convida:
“Vinde e vede”.
Descobrir o Mestre
e poder ficar
com ele os empolga tanto,
que um dos dois, André, logo vai chamar seu irmão Pedro para
entrar nessa companhia também. E no dia seguinte Filipe (o
outro dos dois?) chama Natanael a integrar o grupo. A 1ª leitura
aproxima desse relato
o que ocorreu, mil anos antes, ao jovem Samuel,
“coroinha” do sacerdote
Eli no templo de Silo. Deus o estava chamando,
mas ele pensava que fosse o
sacerdote. Só na terceira
vez o sacerdote lhe ensinou
que quem chamava
era Deus mesmo.
Então respondeu: “Fala, Senhor, teu servo escuta”.
“Vocação” é um diálogo entre
Deus e a gente – geralmente por meio de algum intermediário humano. A pessoa não decide por si mesma como vai servir a
Deus. Tem de ouvir, escutar, meditar. Que vocação? Para que serviço Deus nos chama?
Logo se pensa em vocação
específica para padre ou para a vida religiosa. Mas, antes disso, existe a vocação
cristã geral, a vocação para os diversos
caminhos da vida, conduzida pelo Espírito de Deus e da qual Cristo é o portador e dispensador. Essa vocação
cristã realiza-se no casamento, na vida profissional, na política, na cultura
etc. Seja qual for o caminho, importa ver se nele seguimos o chamado de Deus e
não algum projeto concebido em função de nossos próprios interesses.
O
convite de Deus pode ser muito discreto. Talvez esteja escondido em algum fato
da vida, na palavra de um amigo… ou de um inimigo! Ou simplesmente nos talentos que Deus nos deu. De nossa parte,
haja disposição positiva. Importa estar atentos.
Os discípulos estavam à procura. Quem não procura pode não perceber o discreto
chamamento de Deus. A disponibilidade para a vocação mostra-se na atenção e na
concentração. Numa vida dispersiva, a vocação não se percebe. E importa também
expressar nossa disponibilidade na oração: “Senhor, onde moras? Fala,
Senhor, teu servo escuta”.
Sem a oração, a vocação
não tem vez.
Finalmente, para que a vocação
seja “cristã”, é preciso que Cristo esteja
no meio. Há os que confundem vocação com dar satisfação aos pais ou
alcançar um posto na poderosa e supostamente segura instituição que é a Igreja.
Isso não é vocação de Cristo. Para saber se é realmente Cristo que está
chamando, precisamos de muito discernimento, essencial para distinguir sua voz
nas pessoas e nos fatos por meio dos quais ele
fala.
Por
Pe. Johan Konings, sj
Pe. Johan Konings, sj é jesuíta, nascido na Bélgica, reside há muitos anos no Brasil, onde leciona desde 1972. É doutor em Teologia e mestre em Filosofia e em Filologia Bíblica pela Universidade Católica de Lovaina. Atualmente é professor de Exegese Bíblica na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), em Belo Horizonte. Dedica-se principalmente aos seguintes assuntos: Bíblia – Antigo e Novo Testamento (tradução), evangelhos (especialmente o de João) e hermenêutica bíblica. Entre outras obras, publicou: Descobrir a Bíblia a partir da liturgia; A Palavra se fez livro; Liturgia dominical: mistério de Cristo e formação dos fiéis – anos A-B-C; Ser cristão; Evangelho segundo João: amor e fidelidade; A Bíblia nas suas origens e hoje; Sinopse dos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas e da “Fonte Q”. E-mail: konings@faculdadejesuita.edu.br