sábado, 13 de janeiro de 2018

Vocação – convite de Deus para todos nós!

No Brasil, a festa do Batismo do Senhor, com a qual se o encerramento do tempo do Natal, substitui o primeiro domingo do tempo comum, de modo que este começa com o segundo domingo. A espinha dorsal da liturgia da Palavra nos domingos do tempo comum é a leitura contínua do evangelho do ano (no caso, Marcos), e os textos evangélicos são ilustrados, na 1ª leitura, por episódios do Antigo Testamento. A 2ª leitura não se integra nesse sistema e recebe sua temática, de modo independente, da leitura semicontínua das cartas do Novo Testamento (hoje, a questão da fornicação em Corinto).
A leitura evangélica está em continuidade com a do Batismo do Senhor. Narra a vocação dos primeiros discípulos de Jesus. Ora, como o evangelho do ano, Marcos, é mais breve que os outros, a liturgia de hoje abre espaço para o Evangelho de João (normalmente lido só na Quaresma e no tempo pascal). De acordo com o Quarto Evangelho, João Batista encaminha dois de seus discípulos para Jesus, apontando-o como o Cordeiro de Deus. E quando vão em busca


de Jesus, este lhes responde com o misterioso: “Vinde e vede”. A liturgia combina com esse texto a vocação de Samuel, na 1ª leitura. As duas vocações, porém, são diferentes. No caso de Samuel, trata-se da vocação específica do profeta; no episódio dos discípulos de Jesus, trata-se da vocação de discípulos para integrar a comunidade dos seguidores. São chamados, antes de tudo, a “vir” até Jesus para “ver” e a “permanecer/morar” com ele. Daí se inicia um processo de “vocação em cadeia”. Os que foram encaminhados pelo Batista até Jesus chamam outros (“André… foi encontrar seu irmão…”). Nessa dinâmica global da vocação cristã se situam as vocações específicas, como a de Simão, que, ao aderir a Cristo, é transformado em pedra de arrimo da comunidade cristã.
Desde seu nascimento, o profeta Samuel fora dedicado ao serviço de Deus no santuário de Silo, em agradecimento pelo favor que Deus demonstrara a Ana, sua mãe estéril (cf. 1Sm 1,21-28). Mas o serviço no santuário não esgotou sua missão. Antes que Samuel fosse capaz de o entender, Deus o chamou para a missão de profeta. A vocação de Deus, porém, não é coisa evidente. Descobre-se pouco a pouco. Três vezes Samuel ouve a voz, pensando ser a voz do sacerdote Eli. Este faz Samuel entender que é a voz do Senhor; então, quando ouve novamente o chamado, o jovem responde: “Fala, teu servo escuta”. Escutar é a primeira tarefa do porta-voz de Deus.
Como dissemos, o evangelho é tomado de João, no episódio do testemunho do Batista: a vocação dos primeiros discípulos. João Batista encaminha seus discípulos a se tornarem discípulos de Jesus (o tema volta em Jo 3,22-30). À busca desses discípulos corresponde um convite de Jesus para que venham ver e permaneçam com ele (Jo 1,35-39). E a partir daí segue uma reação em cadeia (1,41.45).
Temos aqui a apresentação tipicamente joanina da busca do Salvador. Nos outros evangelhos, Jesus se apresenta anunciando a irrupção do reino de Deus. Em João, ele é a resposta de Deus à busca do ser humano, assim como o Antigo Testamento diz que a Sabedoria se deixa encontrar pelos que a buscam (cf. Sb 6,14). Devemos buscar o encontro com Deus no momento oportuno, enquanto se deixa encontrar (Is 55,6). “Vinde ver…” é a resposta misteriosa de Jesus à busca dos discípulos que o Batista encaminhou para ele, apontando-o como o “Cordeiro de Deus”. Descobrimos, portanto, atrás da cena narrada no evangelho (Jo 1,35-39), toda uma meditação sobre o encontro com Deus em Jesus Cristo, revelação de Deus que supera a Sabedoria do Antigo Testamento.
Pelo testemunho do Batista, os que buscavam o Deus da salvação o vislumbraram no Cordeiro de Deus, o Homem das Dores. Querem saber onde é sua morada (o leitor já sabe que sua morada é no Pai; cf. Jo 14,1-6). Jesus convida a “vir e ver”. “Vir” significa o passo da (cf. 6,35.37.44.45.65; também 3,20-21 etc.). “Ver” é termo polivalente, que, no seu sentido mais tipicamente joanino, significa a visão da fé (cf. sobretudo Jo 9). Finalmente, os discípulos “permanecem/demoram-se” com ele (“permanecer” ou “morar” expressa, muitas vezes, a união vital permanente com Jesus; cf. Jo 15,1ss). Os que foram à procura do mistério do Salvador e Revelador acabaram sendo convidados e iniciados por ele.
Um encontro como este transborda. Leva a contagiar os outros que estão na mesma busca. André, um dos dois que encontraram o procurado, vai chamar seu irmão Simão para partilhar sua descoberta (v. 41: “Encontramos!”). Simão se deixa conduzir até o Senhor, que logo transforma seu nome em Cefas (rocha, “Pedro”), dando-lhe nova identidade. Na continuação do episódio (1,45), encontramos nova “reação em cadeia”. Como o Batista apresentou seus discípulos a Jesus, em seguida os discípulos procuraram outros candidatos. Estes traços da narrativa podem aludir à Igreja das origens, consciente de que o “movimento de Jesus” teve suas origens no “movimento do Batista” e de que, nas gerações futuras, os fiéis já não seriam chamados por Jesus mesmo, mas por seus irmãos na fé.
Como foi dito na introdução, a temática da leitura não é estabelecida em função das duas outras leituras. Paulo trata da mentalidade da comunidade de Corinto, influenciada por certo libertinismo. Liberdade, sim, libertinagem, não, é o teor de sua reação. “Tudo é permitido”, dizem certos cristãos de Corinto, e Paulo responde: “Mas nem tudo faz bem” (6,12). Quem se torna escravo de uma criatura comete idolatria: assim se dá com quem se vicia nos prazeres do corpo. O ser humano não é feito para o corpo, mas o corpo para o ser humano, e este para Deus: seu corpo é habitação, templo de Deus, e serve para glorificá-lo.
A oposição de Paulo à libertinagem sexual não se deve ao desprezo do corpo, mas à estima que ele lhe dedica. O corpo não fica alheio ao enlevo do espírito, antes o sustenta e dele participa; por isso, qualquer ligação vulgar avilta a pessoa toda. O ser humano todo, também o corpo, é habitáculo do Espírito Santo. A pessoa deve ser governada para este fim do ser humano integral, membro de Cristo, e não ser subordinada às finalidades particulares do corpo. Absolutizar os prazeres corporais é idolatria, e esta é uma mensagem que precisa ser destacada no contexto de nossa “civilização”.
Segundo o Evangelho de João, foi dentre os discípulos do Batista que surgiram os primeiros seguidores de Jesus. O próprio Batista incentivou dois de seus discípulos a seguir Jesus, “o Cordeiro que tira o pecado do mundo”. Enquanto se põem a segui-lo, procurando seu paradeiro, Jesus mesmo lhes dirige a palavra: “Que procurais?” “Mestre, onde moras?”, respondem. E Jesus convida: “Vinde e vede”. Descobrir o Mestre e poder ficar com ele os empolga tanto, que um dos dois, André, logo vai chamar seu irmão Pedro para entrar nessa companhia também. E no dia seguinte Filipe (o


outro dos dois?) chama Natanael a integrar o grupo. A leitura aproxima desse relato o que ocorreu, mil anos antes, ao jovem Samuel, “coroinha” do sacerdote Eli no templo de Silo. Deus o estava chamando, mas ele pensava que fosse o sacerdote. na terceira vez o sacerdote lhe ensinou que quem chamava era Deus mesmo. Então respondeu: “Fala, Senhor, teu servo escuta”.
“Vocação” é um diálogo entre Deus e a gente geralmente por meio de algum intermediário humano. A pessoa não decide por si mesma como vai servir a Deus. Tem de ouvir, escutar, meditar. Que vocação? Para que serviço Deus nos chama? Logo se pensa em vocação específica para padre ou para a vida religiosa. Mas, antes disso, existe a vocação cristã geral, a vocação para os diversos caminhos da vida, conduzida pelo Espírito de Deus e da qual Cristo é o portador e dispensador. Essa vocação cristã realiza-se no casamento, na vida profissional, na política, na cultura etc. Seja qual for o caminho, importa ver se nele seguimos o chamado de Deus e não algum projeto concebido em função de nossos próprios interesses.
O convite de Deus pode ser muito discreto. Talvez esteja escondido em algum fato da vida, na palavra de um amigo… ou de um inimigo! Ou simplesmente nos talentos que Deus nos deu. De nossa parte, haja disposição positiva. Importa estar atentos. Os discípulos estavam à procura. Quem não procura pode não perceber o discreto chamamento de Deus. A disponibilidade para a vocação mostra-se na atenção e na concentração. Numa vida dispersiva, a vocação não se percebe. E importa também expressar nossa disponibilidade na oração: “Senhor, onde moras? Fala, Senhor, teu servo escuta”. Sem a oração, a vocação não tem vez.

Finalmente, para que a vocação seja “cristã”, é preciso que Cristo esteja no meio. os que confundem vocação com dar satisfação aos pais ou alcançar um posto na poderosa e supostamente segura instituição que é a Igreja. Isso não é vocação de Cristo. Para saber se é realmente Cristo que está chamando, precisamos de muito discernimento, essencial para distinguir sua voz nas pessoas e nos fatos por meio dos quais ele fala.

Por Pe. Johan Konings, sj

Pe. Johan Konings, sj é jesuíta, nascido na Bélgica, reside há muitos anos no Brasil, onde leciona desde 1972. É doutor em Teologia e mestre em Filosofia e em Filologia Bíblica pela Universidade Católica de Lovaina. Atualmente é professor de Exegese Bíblica na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), em Belo Horizonte. Dedica-se principalmente aos seguintes assuntos: Bíblia – Antigo e Novo Testamento (tradução), evangelhos (especialmente o de João) e hermenêutica bíblica. Entre outras obras, publicou: Descobrir a Bíblia a partir da liturgia; A Palavra se fez livro; Liturgia dominical: mistério de Cristo e formação dos fiéis – anos A-B-C; Ser cristão; Evangelho segundo João: amor e fidelidade; A Bíblia nas suas origens e hoje; Sinopse dos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas e da “Fonte Q”. E-mail: konings@faculdadejesuita.edu.br